Gatinhos? Adoroooooooooooo

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O agradecimento dos animais pelo Natal ou ‘Hoje eu sou uma estrela’



por Marcio de Almeida Bueno

Esqueça o oba-oba das lojas, os empurroões no trânsito e a
expectativa de folga, bebida e comilança. Somente o olhar dos animais
não-humanos é verdadeiro, dentre o furacão que os engole com mais força,
no final de cada ano. Os animais da pecuária encaram o fim de suas
vidas – ‘eles nasceram para isso’ – enquanto contemplam o traseiro de um
clone seu, nos bretes e corredores de concreto que antecedem a mesa
farta preparada com tanto esmero pelas famílias de bom coração.

O olhar de quem não sabe chorar, já que a reza na hora do desespero é
exclusividade na lista da racionalidade – essa qualidade que separa a
humanidade das bestas-feras. O olhar de quem viu o filhote ser puxado
para longe de si pelos funcionários da fazenda, esse lugar bucólico onde
os animais são tratados como reis, já que optaram por isso em troca de
suas liberdades.



O olhar do frango que está encaixotado, empilhado em um caminhão que
passa na nossa frente quando estamos na estrada, rumo às férias.
Perdemos um segundo, apenas, pensando nisso. Não há espaço para que ele
nos dê um tchauzinho, talvez agradecendo pelo doce toque da morte que o
aliaviará e abreviará sua existência marcada pela ausência de mãe,
confinamento, horários alterados para ditar o ritmo da engorda e
opressão no dia-a-dia.

‘Obrigado Papai Noel ou menino Jesus por me tirar de um aviário com
outras milhares de aves. Obrigado pela ração e água que mantiveram este
corpo vivo, pois ele vale pelo preço que alguém paga. Não tem o valor
que minha mãe, animal como eu, instintivamente perceberia, e por isso me
defenderia, em condições normais. Aqui sou um entre milhares, e não
parece fazer muita diferença se eu morrer agora ou esperar o caminhão
dos caixotes. Nasci de uma máquina de ovos, mas espero encontrar minha
mãe, ciscando a meu lado, algum dia.



Obrigado Deus humano pela corrente que sempre existiu em torno do meu
pescoço, que não me permite caminhar até o horizonte. Ou até o ponto
onde há sombra, onde a água da chuva não está empoçada. Agradeço pelos
dias que lembraram da minha existência, e sobras de comida chegaram até
onde esta corrente permitiu alcançar. Obrigado, Papai Noel, por ter sido
escolhido como animal de estimação por uma família de humanos.



Obrigado, espírito natalino, por eu ter puxado tanta carroça em meio à
fumaça de óleo diesel, fraco, assustado e sedento, que enfim eu tombei
no asfalto. A última surra que tomei do carroceiro, para que eu me
levantasse, permitiu que enfim meu espírito pudesse cavalgar livre
naquelas campos verdes onde quadrúpedes iguais a mim, porém belos e com
longas crinas, correm sentindo o vento da natureza. Acho que o esforço
que fiz diariamente para tirar meu condutor da miséria, ou pelo menos
diminuir sua pobreza, foi menos do que eu poderia, entao eu aceito meu
castigo.



Obrigado, família do presépio, por eu ter sido o escolhido para,
ainda bebê, estar na mesa de tantas residências, para ter meu pequeno
corpo saboreado em uma bonita bandeja, assado e servido à meia-noite.
Ainda não entendi por que nasci e morri tão rápido, se fiz algo errado a
ponto de não poder crescer um pouco mais em um lugar que, onde vi,
havia outros como eu, alguns bem gordos. Mal lembro da minha mãe, mas
lembro que ela não podia se virar, cercada em um gradeado enquanto
mamávamos. Talvez tenha sido azar, talvez tenha sido sorte.



Obrigado meu Deus, por eu poder ajudar tanta gente a usar um xampu
que não irrite os olhos, uma maquiagem que não cause problemas, um
produto qualquer a ser dado de presnete neste Natal, que nunca vou saber
direito, que atendeu os humanos em suas expectativas mais simples.
Estive em um laboratório, cercado de pessoas de jaleco branco, durante
tempo suficiente para saber que sou parte importante do progresso, que a
Ciência evoluiu graças à minha dor, meu aprisionamento e tudo aquilo
que os produtos geraram nos meus olhos e no meu corpo. Fico grato por
ter ajudado.



Obrigado Maria, mãe de todas as mães que, zelosas como eu, dão leite a
seus filhos durante anos, mesmo após o fim de sua amamentação natural.
Minha vida neste estábulo, com úberes gigantes e doloridos, plugados em
uma máquina, é o sacrifício que faço para a saúde humana. Não percebi,
ainda, em minha mentalidade abaixo da humana, porque o leite de meus
filhos vai para os filhos de outra espécie, e até quando já são adultos.
Meu filhote não está mais ao alcance de minha vista, foi retirado cedo
de meu lado, mas sei que o papel dele, como vitelo, ocupa espaço de
respeito junto aos humanos. É alvo de muitos comentários e elogios. Pelo
menos é o que imagino, pois o sacrifício é doloroso o suficiente para,
respeitosamente, ousar questionar o porquê de minha existência. Mas
agradeço mesmo assim, Papai Noel.



Obrigado pelas palmas cada vez que apareço no picadeiro. O olhar das
crianças me faz esquecer a minha vida de tédio e imobilidade, viajando
de cidade a cidade. Quem sabe um dia eu e os demais animais cheguemos ao
lugar de onde viemos, que deverá ter muitas árvores, rios e espaços
para correr. Enquanto isso, eu repito as manobras noite após noite,
mostro os mesmos truques que, pela minha teimosia, eu custei a decorar.
Quem sabe neste Natal eu ganhe uma última viagem, de volta ao habitat
que jamais conheci em vida.



Obrigado Natal, por eu poder aquecer tanta gente elegante em momentos
de frio. Nasci peludo tal como minha mãe, e como ela pude participar da
indústria humana, essa coisa que traz tanto progresso, dando de bom
grado minha própria pele para que maridos mostrem afeto à esposa,
presenteando-as com belos casacos. Muita gente famosa e rica usa a pele
que pode ter sido minha. Isso me enche de orgulho e faz valer o tempo
que morei em uma gaiola pouco maior que meu próprio corpo. Já estava
cansado de andar em círculos, lembrando dos bosques que um dia corri de
cima a baixo. Mas um dia veio a dor que, por pior que tenha sido, me
libertou finalmente. Ainda relutei alguns minutos, já sem pele, mas vi
que a liberdade me abraçava e escurecia minhas vistas. Acho que valeu a
pena, pois sou fotografado e até apareço na televisão, durante o inverno
– pelo menos acredito que aquelas partes sejam minhas, cobrindo o corpo
de pessoas tão bonitas e famosas. Obrigado aos responsáveis.



Obrigado a todos que vieram me assistir nesta arena. Ainda estou
zonzo e ofuscado pela luz após dias de escuridão, mas já entendi que,
aqui, eu sou a atração. Há um semelhante a mim, porém sem chifres e mais
magro, e nele está montado um humano, com roupas garbosas e armas tão
afiadas como as que já furaram tantos iguais a mim. Eu espero que tudo
isto termine logo, pois o cansaço está vencendo a euforia, há tanto
sangue que já não sei se é meu ou de alguém antes de mim, e está difícil
fazer levantar a platéia tantas vezes. Que a morte venha me tocar com a
mesma doçura da última vez que fui tocado pela minha mãe. Ela deve
estar orgulhosa de um filho que resistiu até o fim, cercado de espadas,
aplaudido, sangrando ajoelhado, língua de fora mas fazendo questão de
participar do show até o fim. Acho que os aplausos são para mim, já que
os olhares convergem para onde estou. E eu não sei onde estou.



Obrigado menino Jesus por ter nascido e feito seus iguais perceberem a
necessidade de haver uma festa em seu nome, para redenção e paz, onde
eu seria assado em espeto e saboreado por tantas pessoas felizes,
sorridentes e em clima de fraternidade. Jamais imaginei que, sem saber
falar, sem ter tido escolhas, seria eu o ponto central dos churrascos de
de final de ano de tantas empresas, entidades, famílias e grupos a
confraternizar. Aguardei este momento sempre em espaços com arame
farpado, tal como a coroa que um dia finalmente lhe puseram na cabeça, e
usei argola no nariz para que um filho seu, fiel e devoto, me
conduzisse para o lugar certo. Apanhei da vida, mas quem não apanhou?
Sempre soube que uma vida de aperto, confinamento, marcação a ferro
quente, castração a frio e morte sobre o concreto teriam um sentido
maior. Obrigado por dar um norte a minha vida. Hoje, eu sou uma estrela.




Marcio de Almeida Bueno

Jornalista multifuncional, membro-fundador da Vanguarda Abolicionista, ativista pró-libertação animal e veganismo, colunista da ANDA, músico, dublê de músico, voluntário em diversas frentes.

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